Embora enfrente ainda grande resistência, em que sua conduta sexual e afetiva é majoritariamente vista como pecado, esse grupo tem se organizado em coletivos e ações pastorais e até ganhado apoio de paróquias e lideranças religiosas
A recente declaração do papa Francisco de apoio à união civil de homossexuais retomou a discussão sobre o espaço da população LGBT também dentro da Igreja Católica. Embora enfrente ainda grande resistência, em que sua conduta sexual e afetiva é majoritariamente vista como pecado, esse grupo tem se organizado em coletivos e ações pastorais e até ganhado apoio de paróquias e lideranças religiosas.
No Brasil, a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT já integra pelo menos 20 grupos das regiões Sul, Sudeste, Centro-oeste e Nordeste do País. Há, ainda, outras entidades de nível nacional, como a Diversidade Católica, fundada em 2007.
Católica “de berço”, a psicóloga Marianne Luna, de 25 anos, esteve à frente de iniciativas variadas dentro da igreja desde a adolescência. Por alguns anos, chegou a afastar-se, mas retornou em 2013, “tentando ter uma relação mais saudável com os dogmas” e de desconstrução de alguns tabus, como discussões sobre feminismo e racismo dentro da religião.
Hoje, é uma das coordenadoras do Movimento Pastoral LGBT Marielle Franco, também chamado de Mopa. Fundado em 2018, o grupo realiza atividades na Paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, que integra a diocese de São Miguel Paulista. Embora fique na zona leste, Marianne diz que as ações acolhem pessoas “da cidade inteira”, sendo ela mesmo da região sul paulistana.
Os encontros são formativo-religiosos, com acolhimento e discussões, e ocorrem em uma sala da paróquia, com divulgação em murais na igreja e durante a própria missa, embora por vezes haja resistência de alguns frequentadores. Eventualmente, o grupo consegue a participação pontual de algum religioso “Muitos dos jovens que vão até os encontros são de famílias que não sabem (que são LGBT), não têm um lugar pra conversar”, comenta.
Embora esse tipo de ação seja realizada por leigos (fiéis não ordenados), a psicóloga conta que grupos como o que ela coordena recebem suporte informal de religiosos. “Não tem muito apoio público (pelo receio de serem repreendidos), mas acontece.”
Para ela, a fala recente e posicionamentos anteriores do papa Francisco ajudam na redução da intolerância. “LGBTs dentro da igreja católica sempre existiram, mas foram silenciados por muito tempo. Mas a fala não me dá certeza de que um dia pessoas LGBT poderão se casar na igreja, o que seria o meu sonho”, lamenta.
Outro coletivo com proposta semelhante é o Grupo Diversidade, anteriormente conhecido como Pastoral da Diversidade Sexual, de Belo Horizonte, que tem um foco no apoio à população transgênero e travesti que mora no entorno da Paróquia São Francisco das Chagas. “Estávamos inquietos com essa realidade. Algumas vinham na paróquia quando uma morria, queriam a presença do padre”, afirma um dos coordenadores do grupo, criado em 2017, o professor Felipe Marcelino, de 30 anos.
Segundo ele, a paróquia tem um número expressivo de frequentadores gays, cuja orientação sexual é conhecida no local “Toda paróquia tem pessoas LGBTs, gays, lésbicas. As comunidades toleram, mas isso não é discutido”, comenta. “Todo mundo na paróquia sabia que eu era gay, mas ninguém dizia, era uma coisa velada. A gente trabalha muito a questão de como inserir o debate da diversidade sexual e de gênero dentro de igreja.”
Do interior mineiro, Marcelino sempre participou da igreja e foi até coroinha, mas sofreu na adolescência ao se sentir culpado pela própria sexualidade. “Aos 15 anos, tive minha primeira experiência afetiva, foi muito forte para mim. Lembro dessa confusão, recorri à igreja, chorei muito, ficava arrependido, tinha a sensação de que era impuro. Esse discurso é muito pesado, gera sentimento de culpa.”
Para ele, a receptividade a esse tipo de tema é maior hoje em dia. “O que o papa fala é muito coerente pela própria doutrina igreja, que defende o estado laico. Ele não fala de casamento religioso, fala de direito civil”, destaca. “É um avanço, uma fala impactante, toca no assunto com tranquilidade, sem tabu. E ele sabe do peso que a palavra dele tem. É importante porque muita gente utiliza o discurso religioso para se justificar como homofóbico.”
Casamento religioso ainda é sonho distante
Um dos pontos de mais difícil inserção é o de reconhecimento do casamento. No Brasil, nos últimos anos, padres de diferentes localidades chegaram a ser afastados e punidos por participarem da cerimônias de matrimônio de casais LGBT, mesmo que fora da igreja. Outros foram criticados por setores conservados por abordar o assunto em alguma fala.
Em Goiânia, por exemplo, o padre César Garcia foi afastado após dar uma bênção no casamento dos arquitetos Leo Romano, de 49 anos, e Marcelo Tentro, de 45 anos, de quem era amigo. “Ele estava com uma roupa normal (terno, não batina), falou lindamente palavras de amor, contra o preconceito, foi uma cerimônia super respeitosa e afetiva”, recorda Romano. “Foi uma repercussão no Brasil todo. Por uma coisa que deveria ser cotidiana, deu uma tempestade.”
Para ele, a declaração do papa é importante. “É um degrau a mais, não deixa de ser uma conquista, tardia”, comenta. “Infelizmente, a gente precisa de chancelas para que possam entender e ver que as coisas evoluem, o que era velado deixa de ser.”
Outro caso, com resolução mais positiva, foi o do batismo dos três filhos (Alyson, Jéssica e Filipe, então com 16, 14 e 12 anos) do professor universitário Toni Reis, de 56 anos, e do tradutor David Harrad, de 62 anos, realizado em 2017 em Curitiba “Eles que pediram (para serem batizados). Buscamos quatro igrejas diferentes, mas disseram não. Procurei o arcebispo, que aceitou.”
Tempos após a cerimônia, o professor reuniu algumas fotos e mandou para o Vaticano. A resposta veio meses depois, em uma carta do monsenhor Paolo Borgia que trazia uma foto do pontífice “O papa Francisco lhe deseja felicidades, invocando para a sua família a abundância das graças divinas, a fim de viverem constante a condição de cristãos”, dizia um trecho. Hoje, a carta está enquadrada na sala e emociona Toni, que na infância colocava os vestidos da mãe para brincar de celebrar missa. Anos depois, na adolescência, afastou-se por algum tempo do catolicismo após um religioso local lhe dizer que estava em pecado. Ele também elogia a recente declaração do líder católico. “O amor cristão deve ser incondicional, não deve semear o ódio, seja contra gays, ciganos, ateus, judeus, agnósticos, veganos, corintianos. Todos fomos feitos à imagem e semelhança de Deus e temos que ter guarida na igreja.”
Por: Giro da Revista - do Estadão Conteúdo
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